Dica cultural: “A estrangeira”, de Claudia Durastanti.

 A dica cultural do mês vem da diretora de Direitos Humanos e Cidadania da Amatra VI, a juíza Mariana de Carvalho Milet. 

Confira! 

De uma maneira incrivelmente leve, a protagonista consegue desenvolver a narrativa de uma infância complicada, uma adolescência solitária e uma vida adulta inconstante, com reflexos nas relações pessoais e familiares. Filha de pais surdos que saíram da Itália para os Estados Unidos, ela nasceu no Brooklin.

Na adolescência voltou com a mãe para a Itália. Quando adulta, mudou-se para Londres. O que sempre persistiu foi a sensação de ser estrangeira, seja pelas mudanças geográficas, seja pela percepção das sensações vivenciadas a partir do curso evolutivo natural da vida. Com uma escrita fluída e peculiar, o livro conta a história sentimental de uma família contemporânea e seus caminhos demonstrando como a deficiência, o gênero e a xenofobia são enfrentados e vivenciados pelo ser humano:

 “Minha mãe e meu pai se conheceram no dia em que ele tentou se jogar da ponte Sisto, em Trastevere. Era um bom local para cair: ainda que fosse um bom nadador, o impacto com a água o teria deixado paralítico, e o Tibre naquela época já era tóxico e esverdeado. Minha mãe caminhava cabisbaixa e com os ombros contraídos, como se estivesse sempre chovendo, especialmente quando andava sozinha, mas naquele dia parou na ponte e viu um garoto montado no parapeito.

Aproximou-se para pôr uma mão sobre seu ombro e puxá-lo para trás, talvez tenha havido uma breve discussão. Ela o convenceu a se acalmar e respirar devagar, depois passearam pela cidade, embriagaram-se e terminaram num hotel com lençóis duros que cheiravam a amônia. Antes do nascer do sol, minha mãe se vestiu e foi embora. Precisava voltar ao internato, e meu pai lhe parecia muito inquieto; não tinha nem balançado as costas dele para avisá-lo. No dia seguinte, quando saiu pelo portão da escola junto com as amigas, o viu com os braços cruzados, apoiado num carro que não era dele, e naquele momento entendeu que tinha se lascado.

Sempre invejei a expressão mística e funesta com que ela conta essa história, sempre senti ciúmes daquele apocalipse. Naquele dia, em frente à escola, meu pai vestia calça jeans justa, uma camisa azul com as mangas enroladas e fumava Marlboro vermelho; consumia dois maços por dia. Tinha ido buscá-la na frente de uma escola pública na rua Nomentana e daquele momento em diante passaram a viver juntos. “Como conseguiu me achar?”, ela perguntava.

Quando eu era criança, ela me contava essa história transformando meu pai num mago obscuro capaz de nos interceptar em qualquer lugar no tempo e no espaço, e eu a abraçava com força, sem responder, perguntando-me como era ser desejada daquele jeito por um homem. Depois, cresci e comecei a lhe mostrar a coisa mais óbvia. “Havia só um colégio para moças como você em Roma, não foi tão difícil.” Ela concordava, depois movia a cabeça: ele a encontrou porque precisava.

Apesar do fim do casamento, ela nunca se arrependeu de tê-lo afastado daquela ponte: ele era surdo, ela também, a relação deles tinha algo mais profundo e íntimo do que o amor.”