Motivação pessoal de juízas provoca transformação social na magistratura

Assessoria de Imprensa da UFPE

Mulheres que, por decisão própria, contrariaram o traçado do destino ao enfrentar um desafio até então reservado aos homens e, sem nem se aperceberem, atuaram como agentes pessoais de transformações sociais. Esse é o fio condutor das entrevistas concedidas por magistradas pernambucanas, paulistas e gaúchas à socióloga Veridiana Parahyba Campos, para a elaboração de sua tese de doutorado A chegada das Meritíssimas: um estudo sobre as relações entre agência individual, ocupação feminina de um espaço de poder e mudança social.


De acordo com o trabalho, o processo de reversão do patriarcado na magistratura brasileira vem sendo vetorizado pelos cursos de ação individuais dessas mulheres (as magistradas) e não por uma agência coletiva, como tende a ser o caso da maioria dos grandes processos sociais. A pesquisadora obteve provas disso nos depoimentos de 21 magistradas entre as pioneiras, primeiras juízas a serem aprovadas nos concursos de suas regiões, e as contemporâneas, ainda na ativa, nos estados de Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul. As entrevistas foram avaliadas tanto quantitativa quanto qualitativamente.


Com orientação da professora Silke Weber, o trabalho foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e buscou revelar como a agência feminina individual pode servir à alteração de uma estrutura patriarcal. A autora deduziu que para a busca da equidade na relação entre mulher e homem, o feminismo, tanto na forma de movimento social, quanto na forma de produção teórica, é, logicamente, a arma mais eficiente, posto que é a única corrente do pensamento humano relativamente bem difundida na maior parte das sociedades modernas ocidentais e que é deliberadamente focada no objetivo de aplacar a desigualdade de gênero.


Dentre as falas colhidas pela pesquisadora, há aquelas que abordam o papel das mulheres nos tribunais e varas judiciais, um campo predominante masculino, alegando que “o juiz tem que ser imparcial em termos ideais e nesse patamar do ideal, eu chego muito perto, mas, não adianta, aquilo que eu penso, eu também penso por ser mulher”. Nesse sentido, que amplia a margem axiológica das decisões judiciais, uma das entrevistadas vai direto ao tema e atesta: a interpretação vem do seu lugar que é só seu”.


Depoimentos
Ainda sobre a peculiaridade do olhar feminino diante do mundo, um das entrevistadas entende que, na função de juíza, a mulher colabora com novas perspectivas de visão para um determinado assunto (...) mulher está acostumada a resolver problemas, vai empurrando a mudança, coloca o dedo na ferida”. E foi da soma desses entendimentos pessoais que a socióloga construiu um novo entendimento sobre o tema: Através desses cursos de ação das juízas de tornarem-se juízas, parece-me que tanto elas mudam um aspecto da sociedade (no mínimo, quantitativamente), quanto mudam a si mesmas, alavancando uma posição social e espraiando para seus cotidianos uma espécie de “segurança de si”, que parece, em muito, exigida e disparada ou fortalecida pela prática profissional.”


Para a pesquisadora, essa feminização da instituição nunca foi, enquanto um projeto, algo consciente para ninguém, nem mesmo para as mulheres juízas e muito menos orientado para uma busca pela igualdade de gênero. O fenômeno se coloca como o resultado do encadeamento de ações individuais e, concomitantemente, amparado pelas possibilidades sociais - dada a melhora geral das condições sociais femininas -, que nos permitem até considerá-lo como algo previsível, mas, definitivamente, não como algo calculado, analisa.


Em síntese, Veridiana explica que esse processo vem sendo vetorizado individualmente por sujeitos que, a princípio, parecem não ter como meta a efetivação do referido processo, mas, sim, motivações pessoais; as juízas não entram na magistratura para feminizá-la; entram porque, pelos mais diversos motivos, querem ser juízas. Entretanto, continua, os seus quereres – parafraseando o Caetano da fase áurea – e, principalmente, os seus fazeres, quando agregados juntos, produzem um fato social que expressa mudança: muito embora os tribunais existam no Brasil há mais de três séculos, hoje, em termos médios, nosso país conta com um contingente de magistradas de aproximadamente 30%.


E, como consta na tese, essa clara desproporção de gênero se fortalece quanto mais altos são os cargos. Mas, mesmo assim, é incontestável a mudança, por mais que ela não tenha sido coletivamente pensada. Onde até muito recentemente não havia mulheres, agora há, declara Veridiana.


Trechos das entrevistas
Juízas reconhecem que a diferença de gênero traz novas abordagens às decisões judiciais


- “Não que você possa mudar, mas você pode mudar essa situação, ter a cabeça mais aberta, você tem que saber como é, ter noção de outra realidade, por isso que é importante entrar vários tipos de pessoas. Não só a mulher. O negro, o homossexual...” (Maria, 45, juíza contemporânea)


- “A gente bota no processo o que a gente é na vida.” (Magui, 78, juíza pioneira)


- “A questão da entrada das mulheres mesmo... A gente precisa de diferentes raciocínios... E se você veio de núcleos sociais diferentes, você tem visões peculiares também. A sua verdade pode não ser a minha, mas as duas juntas podem levar a um resultado melhor.” (Clarissa, 61, juíza contemporânea)


- “O juiz tem que ser imparcial em termos ideais. Nesse patamar do ideal, eu chego muito perto, mas, não adianta, aquilo que eu penso, eu também penso por ser mulher.” (Magali, 48, juíza contemporânea)


- “Acaba que colabora com novas perspectivas de visão para um determinado assunto. A mulher está acostumada a resolver problemas, vai empurrando a mudança, coloca o dedo na ferida.” (Flor, 50, juíza contemporânea)